terça-feira, 23 de outubro de 2018

SOLO SAGRADO


   Você bateu à minha porta tarde da noite pedindo ajuda e eu atendi, porque queria me sentir bem em servir ao outro. Você chorou pelas dificuldades da vida, pois estava difícil recomeçar, e eu sussurrei em seu ouvido toda a força que eu enxergava no fundo de seus olhos, no seu íntimo. Você entrou no solo sagrado do meu coração sem tirar os sapatos e eu deixei, porque você vinha de muito longe e trazia seus costumes. Você puxou uma cadeira, sentou-se à mesa ainda desarrumada, e eu novamente deixei, porque queria dar alento ao seu coração cansado.
   Você comeu do meu alimento sem lavar as mãos e eu deixei, porque queria valorizar a sua visita. A louça ficou toda espalhada. Eu não liguei, porque de vez em quando me dou esse direito de deixar a louça suja na pia. E você nem terminou de comer o que serviu, porque não gostou muito do tempero. Deixei que você reclamasse um pouco sobre como eu preparava o alimento e sobre como eu era inexperiente em tantas coisas, porque queria aprender a ser melhor, a fim de te oferecer o meu melhor. Você pegou algumas cobertas no alto do guarda-roupa, derrubou algumas coisas pelo chão e deitou-se em minha cama, reclamando do meu colchão. Sim, de novo eu permiti, porque eu queria te dar o conforto do meu abrigo e te oferecer tudo o que eu tinha de melhor nesse espaço. Pela manhã, você se levantou meio irritado e me perguntou qual era a minha dificuldade em voltar as coisas pro lugar. Deixei que falasse dessa forma, porque, pensei, sua alma estava cansada e tinha os seus motivos e problemas.
   Depois que organizei o café, você tinha uma notícia para dar: estava indo embora, porque conseguiu um bom lugar pra ficar... Apesar de tudo, segurei firme sua mão e pedi, com minha grande devoção: "Fica aqui comigo". Mas você não quis, disse que não lhe fazia bem estar dentro do meu coração imperfeito.
   Depois que saiu pela porta, as mensagens acabaram, você já estava forte de novo e não precisava de mais ninguém pra te contar tudo de que era capaz.
   Agora estou aqui sozinho: sonolento, sentado no chão sujo, casa desarrumada, louça na pia, comida estragada, quarto bagunçado... Derramei tudo de bom que eu tinha em mim na espiral da sua estima desorientada. Você se levantou. Eu estou em queda livre.
Solo profanado. Coração em pedaços...





Oswaldo Juliano Sandi