domingo, 15 de outubro de 2017

DESCONGELAR



Depois que você foi embora e quebrou o acordo que você mesmo inventou, passei alguns dias sem olhar de verdade pra dentro da geladeira. Logo naquela semana eu descongelei tudo e tirei o excesso de água, mas foi só.
Deixei tudo lá dentro do mesmo jeito, as coisas que você comprou começaram a estragar lentamente. Teus ingredientes mágicos que já não me servem de nada agora estão por um fio: entre o lixo e o desperdício, conforme você fez com a gente. Só que a gente já tinha acabado faz tempo — isso foi o que você disse sem nenhum sabor agradável.
Eu poderia muito bem acordar no meio de um pesadelo durante a madrugada e assaltar essa geladeira cheia de sobras. Eu poderia perder a memória e voltar ali com toda a fome que minha alma sente agora e morrer envenenado pelas coisas que eu deixei escondidas até ter essa força que tive hoje.
Hoje sim, depois de duas semanas, eu consegui avaliar o estrago. Olhar todos os ingredientes deteriorados ali dentro, tirar um por um, olhar pra eles à luz mais clara, sentir seu cheiro — sentir o cheiro daqueles seus malditos temperos na medida certa. Minha vontade era esquecer tudo que foi bom, porque eu não aprendi nada com essa história. Só fiquei pior. Me tornei uma pessoa pior e sem qualquer indício de fé nessas coisas que a gente debateu tanto...
Minha vontade — de verdade — era jogar tudo fora. Chamar um caminhão de lixo e mandar levar qualquer vestígio que você tenha chegado a tocar nessa casa. Talvez demolir tudo. Demolir a energia que ainda vaga em alguns cantos e eu ainda estou tentando apagar. Destruir cada quadro que antes tinha mil cores e agora é só uma lembrança em preto e branco, lembrança falsa e desgastada pelas palavras que vieram depois.
Com as coisas é tudo muito simples. Você tira todo o lixo pra fora e levam pra apodrecer num lugar distante.
Queria mesmo era isso... Tirar pra fora tudo que ainda tem dentro de mim e mandar embora junto com o lixo amanhã de manhã. Quem sabe assim, outras coisas ocupariam este espaço...




Oswaldo Juliano Sandi

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

MALDIÇÕES (TEU SIGNO - Parte 2)

As palavras ecoaram pelo espaço aberto e saíram vagando lentas pela noite no meio da fumaça. Do alto, as estrelas jamais poderiam ouvir tudo o que eu ouvi naquele momento. Mas eu bem que podia imaginar que a fumaça levava essas palavras tão longe, que até as estrelas se retorciam, mesmo sem ouvir o som. Eram palavras duras... maldições que ficariam no meu espaço consciente por um bom tempo, e por anos no meu inconsciente... arquitetando lentamente mais um pedaço de mim...
Apaguei a maldição registrada na porta com força, risquei um pouco o carro, mas na mancha que ficou, ainda enxergo cada letra do que estava escrito... Não a palavra em si, sem significado algum, mas a maldição por trás dela: centenas de pensamentos rondando minha cabeça desde o momento em que registrei uma foto para jamais esquecer do que aconteceu. Registrei duas. Ainda nem olhei, porque dói. Dói imaginar cada curva das estradas por que passei para retirar a encomenda direto da fonte.
As palavras malditas tiraram um sorriso dolorido de mim no meio da vontade de dar um beliscão e acordar daquele pesadelo. Sorriso nervoso, de quem vai saltar pra morte. Elas me tiraram o chão e eu tive que me apoiar em algo pra conseguir respirar e jogar alguma coisa pra fora. Vomitar qualquer coisa que não fosse uma maldição tamanha como as que entravam em meu ouvido e nas fibras pouco vivas do meu corpo.
Sim, maldições tão fortes quanto uma tempestade que limpa o céu da noite clara que pintei durante a viagem. Pintei, porque a tempestade começou a cair tão logo cheguei ao meu destino.
Força.
Perseverança.
Fé.
Afeto.
Paz...
Nem todas as bênçãos do mundo conseguem apagar uma maldição bem dita. Tudo porque só se compreende trazendo aquilo tão fundo pra alma, que fica difícil jogar pra fora depois de entender tamanha furada.
Centenas de maldições foram proferidas naquela noite e eu rogando pequenas pragas, coisas tolas e mal acabadas. Claro, jamais quero proferir ao outro tamanha dor que estava sentindo...
Posso me ver como num espelho: boca trêmula, coração acelerado desde o momento em que você chegou. Olhos incrédulos — sonâmbulo... Súbito, posso sentir o vento batendo em meus braços como se eu fosse um pássaro, me levando no tempo para um passado que eu já cansei de apagar.
Outra boca me amaldiçoava, outro ser, outro lugar... Mesma sensação, mesmo signo, menos preparo. Maldições sinceras. Exageradas, mas sinceras.
A pior dor do mundo é quando você percebe que a boca que amaldiçoa está dizendo a verdade, quando teria tantas outras formas de contar uma verdade tão doída.
Você despejou maldições... Fiquei sem palavras.



Oswaldo Juliano Sandi